30 maio 2025

 





leituras  de  maio


























:: notas :: 



le murmure

christian bobin

ed. folio

 

com pouco mais de cem páginas que se devoram num ápice, este é um pequeno-enorme livro. escrito em grande parte no leito do hospital onde veio a falecer, aqui fica o conjunto de pensamentos finais de um dos maiores poetas em prosa de sempre, a que cheguei tarde (mas ainda a tempo).


 

the world according to colour 

james fox

ed. penguin

 

belíssimo ensaio sobre o papel das cores na arte, na ciência, na filosofia, na cultura e na vida quotidiana da espécie humana ao longo dos tempos. o capítulo sobre o negro (a cor que não é cor) é uma pequena obra-prima.


 

proust - le dossier

jean-yves tadié

ed. folio

 

inspirado pela leitura recente do “dicionário de proust” fui reler partes (as publicadas por críticos e por escritores a propósito da “recherche”) deste curioso dossier sobre proust, assinado por um dos seus grandes biógrafos. à semelhança do pessoano, este é um labirinto onde gostamos de nos perder.

 

 

o livro de énio

carlos poças falcão

ed. officium lectionis

 

longo poema, quase místico, quase um cântico dos cânticos para o século xxi, em 888 oitavas (o número que resulta do somatório do valor das letras do nome de jesus escrito em grego), por vezes difícil de decifrar e onde se inscreve uma releitura dos evangelhos através das vivências, reais e esotéricas, de um grupo de amigos. toda uma experiência de leitura.


 

under the eye of the big bird 

hiromi kawakami

ed. grante

 

novela distópica, que resulta de contos interligados, passada num futuro talvez não tão improvável quanto parece. a humanidade enfrenta o perigo de extinção, não pela ecologia ou catástrofes, mas por algo bem mais simples e terrível: pela evolução natural já quase não nascem fêmeas. assim, somos todos réplicas genéticas cultivadas, sempre com algum defeito...


 

ao largo da vida 

rainer maria rilke

ed. ítaca

 

conjunto de contos curtos, escritos por um jovem rilke. alguns deles (“festa em família”, “o menino jesus”, “todas numa só”) são pequenas obras-primas. 

 


on the calculation of volume I

solvej balle

ed. faber & faber

 

ao princípio parece uma ideia importada de “groundhog day”, o filme em que bill murray acorda de manhã sempre no mesmo dia. aqui, porém, a protagonista (embora presa indefinidamente no mesmo dia dezoito de novembro) revive o dia de um modo contemplativo e filosófico, quase estóico, não se rendendo à armadilha do tempo. 

 






14 maio 2025

 



Não entres como turista no coração de uma mulher

 

a tirar fotos

deixando latas de cerveja

procurando só catedrais imensas

e estátuas transparentes

 

com a mochila cheia de mapas
e a fazer refeições rápidas

 

há um país

sete cidades

uma cordilheira e um inverno

no coração de uma mulher

 

não bebas só um copo de mar ali

 

não entres no avião

apanha o comboio da meia lua

não reveles ali as tuas fotografias numa hora

 

se não fizer demasiado frio

entra nu

 

não leves guarda-chuva

 

e sobretudo não cortes árvores

no coração de uma mulher

 

não costumam voltar a crescer.

 

 

 



José María Zonta






30 abril 2025

 




leituras  de  abril





 


 


 


 


 




:: notas :: 



a cadeira de mogno

maria f. roldão

ed. de autor

 

um dos problemas (frequentemente irresolúveis) com que se debate a poesia de carácter mais íntimo é conseguir ultrapassar a dificuldade em não cair no eroticamente óbvio, expectável e gratuito. estes poemas fazem-no com elegância e maestria. não é para todos.

 


os naufragistas

robert louis stevenson + lloyd osbourne

ed. tinta da china

 

não sei se será mesmo o melhor livro de stevenson, como dizia borges, mas seguramente anda lá perto. grande narrativa, que nos prende desde a primeira página.

 


frank : sonnets

diane seuss

ed. fitzcarraldo

 

é quase uma autobiografia, ilustrada por momentos, memórias e sentimentos em mais de uma centena de sonetos (que de soneto só têm o facto de conterem catorze versos). a autora nunca se perde aquele seu brilho confessional, cru e honesto - e este livro, belo, ganhou merecidamente um pulitzer.

 


no country for old men

cormac mccarthy

ed. picador

 

tem sido assim nos últimos tempos: vejo ou revejo o filme e, claro, dou por mim a reler passagens do livro.

 


the collected stories of… (volume four) 

philip k. dick

ed. gollancz

 

volume final desta recolha dos contos de dick, onde se destacam “the electric ant”, “oh, to be a blobel!”, e ainda o célebre “we can remember it for you wholesale”, adaptado ao cinema como “total recall”. foi uma viagem fascinante pelo reino da ficção científica, um universo a tentar explorar no futuro (salvo seja!)...

 


dicionário de proust

joão pedro vala

ed. quetzal

 

o começo de um livro é precioso. este, seguramente um dos melhores do ano, abre com uma magnífica frase, resplandecente e redentora: por decisão do autor, esta obra segue a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990. e depois, ao longo de 23 apaixonantes entradas (uma por cada letra do alfabeto), desenrola-se perante o nosso olhar um magnífico ensaio sobre a vida e obra de marcel proust, com natural ênfase na “recherche”, algo que nos faltava e não sabíamos.

 







13 abril 2025

08 abril 2025

 





Imunidade

 

 

 

 

Salto aquela parte em que é

preciso lavar as mãos antes

 

do acto. Entro directamente

na parte das bactérias em

 

que o sujo é belo e a vida

não admite lavagens.

 

 

 

 


Maria F. Roldão







31 março 2025

 




leituras  de  março
























:: notas :: 



súmula poética 

antónio barahona da fonseca

ed. averno

 

um resumo da (mais recente) matéria dada por um dos nossos poetas mais singulares.


 

les choses

georges perec

ed. juilliard

 

foi editada recentemente uma tradução portuguesa, mas quis reler o original destas “coisas”. novela-maravilha, sem enredo, sem moral, sem diálogos, quase até sem personagens (jérôme e sylvie não têm qualquer espessura), em que os objectos (e a sua posse, claro!) desempenham um papel central. sub-titulado como “uma história dos anos sessenta”, não é uma crítica à falsa felicidade do consumismo, está na verdade muito para além disso. perec disse um dia: “acho que há uma ligação entre as coisas do mundo moderno e um tipo de felicidade, mas os que pensam que estava a condenar a sociedade de consumo não perceberam nada do meu livro”.

 


lembro-me

joe brainard + georges perec

ed. cutelo

 

logo após “les choses”, mergulhei no “je me souviens”, uma espécie de autobiografia fragmentária e confessional (inspirada no “i remember” de brainard, que aproveitei para reler) - estando as duas obras aqui emparelhadas em mais uma bela edição da cutelo.

 

 

decidi falar de pássaros

vv. aa.

ed. língua morta

 

compilados por joão vasco rodrigues (que interpõe textos seus subordinados ao mesmo tema), aqui estão reunidos muitos poemas em que aves e pássaros são protagonistas. podia ser uma recolha leve e etérea, mas resulta ser muito mais do que isso.

 


museu do romance da eterna 

macedonio fernández

ed. antítese

 

este romance seminal da literatura argentina foi escrito no princípio do século xx, mas só viu uma primeira edição póstuma em 1967, quinze anos após a morte do autor. é impossível não o ver como antecedente da “rayuela” de cortázar, por exemplo. a história desenrola-se a partir de uma série (quase interminável) de prólogos, que precedem e anunciam uma história que nunca mais chega, porque macedonio percebera que o romance moderno se faz de desvios, possibilidades, digressões (ah, o borgesiano jardim dos caminhos que se bifurcam...). depois, temos a história de um homem viúvo que vai instalar-se numa estância campestre chamada “o romance” e...

 


ao puxar a culatra do longo silêncio

antónio amaral tavares

ed. do lado esquerdo

 

belíssima surpresa, a de um livro de um poeta amadurecido pela voz que emana da ausência de ruídos, do silêncio marinho que vem escrito no coração dos peixes, do silêncio de argila dos mortos. o poeta diz-nos que o silêncio não é fácil de encontrar, que o silêncio de deus é famoso, e letal o silêncio das serpentes, que pode ser ensurdecedor o silêncio das pedras e cheios de barulho os bolsos do silêncio. o poeta sabe que todo o poema é imperfeito (a morte nele convive com as palavras) e que não há vida para lá do poema, mas intui que é o medo do silêncio que conduz às margens da beleza. porque vale a pena puxar a culatra: o silêncio - mais que a cantiga - é uma arma.

 


tokyo express 

seicho matsumoto

ed. penguin

 

um clássico (japonês) da literatura policial.

 

 





27 fevereiro 2025

 
 




leituras  de  fevereiro























:: notas :: 


   

it never rains

roger mcgough

ed. penguin

 

quem julga que a poesia não pode ser divertida devia ser castigado com leitura obrigatória de roger mcgough. aqui há pérolas como: “ * writer’s block * - the excitement i felt / as i started the poem / disappeared on reaching / the end of the fourth line. ”

 


the wind-up bird chronicle

haruki murakami

ed. vintage

 

antecessora de “1Q84” e de uma peculiar espécie de realismo mágico japonês, esta foi a novela em três partes que definitivamente pôs murakami no mapa. várias histórias que se cruzam, entre o tempo presente e o passado durante a guerra da manchúria, enquanto o pássaro de corda faz andar o tempo.

 


the vegetarian

han kang

ed. granta

 

novela-maravilha, tão bela quanto terrível, alegórica e sombria, quase kafkiana, que nos conta uma história de obsessão e desejo e a luta de uma mulher contra uma violência (externa e interna) que a impede de ser vegetariana - e depois vegetal... bastaria este livro para ter ganho todos os prémios (booker, nobel) que na verdade ganhou.

 


os imbecis

vv. aa.

ed. e-primatur

 

contos, histórias e poemas de algumas escritoras russas, injustamente esquecidas pelos cânones da literatura.

 


o ouriço e a raposa

isaiah berlin

ed. guerra & paz

 

partindo de um fragmento do poeta grego arquíloco - “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante” - sob o nosso olhar é tecido um ensaio sobre a postura de tólstoi perante a história (ele, que era uma raposa a pensar que era ouriço... ou vice-versa?) e, entre outros, o dilema humano entre o monotismo e o pluralismo. brilhante.

 


the collected stories of… (volume three)

philip k. dick

ed. gollancz

 

este terceiro volume dos contos de dick contém pérolas como “sales pitch” (o triunfo da publicidade sobre a vontade?) e o famoso & cinematográfico “minority report” (custa a acreditar que foi publicado em 1956...)